domingo, 28 de junho de 2009

Memória

Xênia de Castro Barbosa
Refletir sobre a Memória é relevante na medida em que orienta nosso posicionamento no mundo, configura nosso Eu e permite a elaboração de identidades pessoais e coletivas.
O ato de narrar é essencialmente recordar e recriar experiências, atribuindo-lhes valores à luz do Presente, das crenças, ideologias e necessidades que ele comporta.
Memória é concebida como conjunto de impressões, imagens, lembranças e experiências que se reatualizam através da linguagem[1]. Tem como suporte a “vida vivida” e a vida sonhada e tanto em suas versões individuais, quanto coletiva, é algo em constante construção, inacabado, sujeito a reformulações. Essas versões da memória encontram-se freqüentemente em disputa, o que conduz a novas reescritas da História e do Poder.
Por uma perspectiva encontram-se as instâncias reguladoras, preservadoras e construtoras da Memória Oficial, e por outra, discursos variados e divergentes que se expressam inclusive pelo silêncio. Constata-se a existência de experiências singulares marcantes, bem como maneiras peculiares de vivenciar os fatos que se contrapõem aos discursos dominantes sobre o passado e exigem nova negociação. Essa memória “subterrânea”, ocultada pela dominante, “quando emerge e invade o espaço público traz à tona reivindicações múltiplas e imprevisíveis a essa disputa da memória” [2]. As entrevistas realizadas com famílias de Itapecerica da Serra (SP) e de Porto Velho (RO), por ocasião de minha pesquisa de Mestrado (Experiências de Moradia:história oral de vida familiar) são ilustrativas de tal afirmação. Mais do que um lugar para morar, reivindicam reforma urbana e um lugar na historiografia:

Estou no MTST desde a época da ocupação Chico Mendes, que desencadeou uma luta muito grande por reforma urbana nessa região de Taboão da Serra, Itapecerica da Serra. (Marcos)

"Acho importante esse tipo de trabalho baseado na história de vida de pessoas como eu, porque até hoje o que está na história, nos livros e é ensinado para os estudantes no colégio é que o Brasil foi construído por homens brancos de origem européia. Cadê as mulheres nessa história? Cadê os negros? Por que os índios não aparecem? Não somos a minoria - como eles falam e querem fazer a gente acreditar - e esse país foi feito com o nosso trabalho, com os nossos esforços e isso precisa ser conhecido e valorizado! A gente tem uma experiência de vida para contar, uma experiência de sobrevivência e trabalho. No meu caso não foi uma experiência muito boa". (Maria da Paixão).

O trecho acima destacado da narrativa do Marcos remete a um projeto político complexo, que vai além do imediatismo das necessidades - como ter uma casa, por exemplo - e disputa poder em espaços públicos, mediante atos e passeatas. Remete-nos também à questão do pertencimento e da identidade. O excerto do texto de Maria da Paixão questiona um modelo de historiografia que retrata uma ideologia elitista de graves conseqüências para a classe trabalhadora em geral, e para os indivíduos que compõem as denominadas “minorias étnicas” ou de “gênero inferior”, e nos coloca diante também da polêmica existente entre História e Memória. Polêmica que, diga-se de passagem, passou a vigorar a partir do Iluminismo, com seus ideais de ciência e verdade, já que na Antiguidade a História e a Memória andavam juntas e a segunda, expressa em testemunhos orais era o cerne da primeira.
A História, a partir de meados do século XX tem ampliado seus objetos e metodologias de pesquisa e aceitado a “heterologia como missão”. No lugar de uma história tradicional, imbuída da idéia de progresso e que rejeita tudo o que se opõe ou escapa à lógica linear, acomoda-se uma história “volúvel e caprichosa”, mutante, inquieta perante aquilo que a história dos fatos consumados, do fim definido, da rígida razão formal ou dialética, excluía: a presença de outros atores, de outras histórias e narrativas, a necessidade de buscar outras partes, não para explicá-las à luz do já sabido ou antevisto, mas para compreendê-las e interpretá-las em sua experiência e historicidade[3]No encalço desse novo posicionamento uma dada concepção de história oral[4] tem colaborado com essa História que pouco a pouco se mostra “fruto de múltiplos temas e focos narrativos”[5], e para além disso, tem se constituído em um “Sistema”, onde não é mais somente a parte procedimental, mas toda a articulação que compreende desde a elaboração do projeto até a construção de uma interpretação própria[6]. Esta história oral aponta para pelo menos dois caminhos: um que se volta para a formulação de políticas públicas como imperativo ético da relação com os colaboradores, e outro, atento a questões relativas ao texto e à narratividade, construindo sua dimensão política em outra esfera, na da consciência do Eu que se expressa na narração de sua experiência de vida, e por meio dela consegue dar sentido à sua existência[7]. Ambos os caminhos não excluem a preocupação com as questões da memória, da identidade, da subjetividade e tem constituído um núcleo conceitual e procedimental específico acerca desses elementos, que se diferencia do elaborado pelas Ciências Sociais, pela Psicologia e Psicanálise.
[1]KOTRE, John. LUVAS BRANCAS: COMO CRIAMOS A NÓS MESMOS ATRAVÉS DA MEMÓRIA. São Paulo: Mandarim, 1997.
[2] POLLAK, Michael. MEMÓRIA, ESQUECIMENTO, SILÊNCIO. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 2, n.3, 1989, p.3-15.
[3] PINTO, Júlio Pimentel. A LEITURA E SEUS LUGARES. São Paulo: Estação Liberdade, 2004.
[4] Refiro-me a história oral desenvolvida pelo professor José Carlos Sebe Bom Meihy, junto ao Núcleo de Estudos em História Oral.
[5] PINTO, op. cit.
[6] BARBOSA, op. cit.
[7] BARBOSA, op.cit.

Modernidade e Experiência

Xênia de Castro Barbosa

Este ensaio é síntese de reflexão incitada pelo curso a Dimensão Cultural das Práticas Urbanas, realizado no segundo semestre de 2007 na Universidade de São Paulo. Nele busco colocar em diálogo a visão de determinados pensadores, como Walter Benjamin, Marshall Berman, Teresa Caldeira e José Guilherme Magnani, que possuem trabalhos e metodologias específicas de investigação da Modernidade e de seu fenômeno a meu ver mais instigante: a cidade e as novas experiências que dela resultam e nela se localizam. Coloco-me, desta forma, como mediadora desse diálogo, dessa “fala” entre pessoas de opiniões muitas vezes divergentes, mais como citadina e cidadã do que como pesquisadora do assunto, até porque sou iniciante na área.
Trago mais questões do que respostas e apenas uma convicção: a de que somente pelo estudo paciente e detalhado das práticas dos diversos grupos que compõem a cidade é possível esboçar uma compreensão de seu todo, já que ela se dá na articulação entre as condições materiais objetivas, de ordem macro-estrutural, e a vida, as estratégias e o conhecimento acumulado dos atores sociais que tecem suas histórias nesse contexto, referenciados sim por ele, mas com a capacidade de subvertê-lo mediante novos e variados processos de apropriação dos espaços.
Modernidade e Experiência serão tratadas aqui de forma conjunta, pois as percebo como um fenômeno no qual uma parte atua na construção da outra, sem se sobrepor, dialeticamente.
Apesar de haver vasta quantidade de trabalhos que discutem a temática de interesse desse texto, tanto nas áreas das Ciências Sociais e da Antropologia, como na História, na Psicologia, na Geografia, na Arquitetura e nas Letras, decidi escrever sobre ela porque considero isso um exercício necessário e importante para a pesquisa que desenvolvo: Cidade e Memória, que procura conhecer por meio de entrevista de história oral de vida de família[1] realizadas com trabalhadores e trabalhadoras sem-teto militantes do MTST[2].
Sobre Modernidade e Experiência

“o que há de mais moderno ainda é um sonho muito antigo”
(Engenheiros do Hawaii)

Apesar de cidades terem existido desde a antiguidade e de muitas nos terem legado registros de intensas atividades culturais, religiosas, políticas e mesmo comerciais, como Tenochtitlám, no Planalto Mexicano, que na época da invasão espanhola contava com cerca de um milhão de habitantes, a Modernidade, modo de vida originário da Europa tem como substrato o renascimento urbano ocorrido na Baixa Idade Média[3], por ocasião de mudanças internas ao Feudalismo, como o fim dos conflitos contra os invasores “bárbaros” (vikings e magiares), que possibilitou significativo crescimento demográfico e aperfeiçoamento das técnicas agrícolas para o aumento da produção de alimentos, cujos excedentes passaram a ser comercializados nas antigas regiões de feiras e junto a edificações fortificadas, como castelos e mosteiros - o que acabou gerando uma nova classe social, a burguesia, bem como da expansão marítima, favorecida pela centralização política e de movimentos históricos como o Renascimento do século XV, que ao abandonar as explicações sobrenaturais dos fenômenos, típicas da Idade Média, e desenvolver análises centradas na razão humana, estabeleceu as bases da ciência moderna, o Iluminismo, que alcançou seu ápice no XVIII e conferiu nova dinâmica ao projeto antropocêntrico e racionalista iniciado no Renascimento. Somado a isso a Revolução Industrial do final do século XVIII, que se estende até os dias de hoje, visto que as inovações tecnológicas e atualmente, as informacionais, não cessam.
É preciso destacar que como resultantes desse processo não temos apenas “artefatos curiosos” ou “facilitadores da vida moderna”, mas novas relações sociais, novas relações entre capital e trabalho, novo modo de produção e que para um grande número de pessoas esse processo de modernização não deixou suas vidas mais fáceis e nem ofereceu as condições necessárias para que pudessem desfrutar de modo completo (ou pelo menos, do modo desejável) de seus benefícios culturais (sejam eles materiais e simbólicos). Este “caso” pode ser uma das interpretações possíveis da epígrafe desse texto: a modernidade é um sonho muito antigo, cultivado de longa data por muitos, mas que ainda não se realizou para eles visto que estão apenas parcialmente inseridos na paisagem moderna, como seu refugo, como elementos de sua contradição, trabalhadores reificados, exército de reserva ou como sujeitos que atuam politicamente na busca de um “lugar sob a luz” e mesmo na busca da transformação desse cenário. As outras faces da Modernidade são a aceleração do tempo, nova relação com o espaço, grande produção (e consumo) de mercadorias, que já entram no mercado com a obsolescência programada, aparente caos, fragmentação e volatilização dos valores morais, o que conduz nossa reflexão a outra dimensão social que se altera profundamente com esse quadro social: a experiência.
Experiência aqui é entendida como a capacidade de vivenciar e sentir as situações e acontecimentos. Diferente da concepção que se tem dela na racionalidade pura ou intelectual aqui a experiência é entendida como “empiria” e está ligada à memória e à linguagem. O trabalho dessas duas interfaces constituintes do humano, decodifica essas experiências e as expressam por meio de narrativas (orais, escritas, gestuais, plásticas, virtuais), explicando-as, tornado-as inteligível, aceitas, recusadas ou re-inventado-as conforme as necessidades do narrador no momento da narração. Contudo, Valter Benjamin[4] alerta para o fato de que certos acontecimentos, como as Guerras Mundiais e o surgimento do Romance Moderno, estariam levando a uma perda da habilidade de comunicar experiências, ouvi-las e dar-lhes continuidade. Não que haja experiências inenarráveis ou impossíveis de serem apreendidas, mas porque a Modernidade instaurou uma forma de existência, veloz e centrada no indivíduo, na qual não temos o despojamento de antes para aprender com o outro (queremos viver por nossa própria conta, “pagar para ver”), e nem o tempo suficiente para a reflexão sobre nossas experiências e as que ouvimos e lemos no dia-a-dia.
Benjamin, no texto acima referido aponta para a perda da capacidade de assimilar as experiências narradas por outros, efeito influenciado pelo caráter mecânico de nosso tempo que tem motivado o desaparecimento do narrador: Narrar histórias é sempre a arte de continuá-las contando e esta se perde quando as histórias já não são mais retidas. Perde-se porque já não se fia e tece enquanto elas são escutadas”[5]
A aceleração do tempo, ou melhor, a criação de outro, mecânico, marcado pelo relógio e não mais pela posição do sol – tempo do Capital, é decorrente da industrialização, do modo de produção capitalista e seu ímpeto universalizante. Esse tempo e essa nova forma de contá-lo vigoram hoje em todo o mundo, embora subsistam as temporalidades internas dos indivíduos (que na lógica da produção capitalista “não devem” ser vivenciadas nos momentos de trabalho, para não atrasar a produção, não provocar acidentes por “distração”, etc) e de grupos com pouco ou nenhum contato com tais elementos da cultura ocidental.
Outro reflexo da Modernidade em nosso comportamento, ainda com relação à questão experiência vincula-se ao papel desempenhado pelos meios de comunicação, que por estarem tão presentes em nossa vida e desenvolverem um trabalho de “filtragem” dos acontecimentos, estabelecendo o que deve e o que não deve ser conhecido e muitas vezes tentando “direcionar” a forma como tais eventos e notícias devem ser recebidos e interpretados pelo público, acaba por “substituir” a experiência. É comum vermos pessoas que moram, por exemplo, na cidade do Rio de Janeiro e nunca foram ao Cristo Redentor, nunca vivenciaram tal experiência porque preferem “conhecê-lo” por meio das telenovelas ou das propagandas de turismo que passam na TV, ou pessoas que poderiam participar de um ato em praça pública a favor de “seus” interesses, mas ficam em casa aguardando a hora do noticiário para saber como foi, sem se posicionar política e moralmente, permitindo que sua postura seja interpretada pelos outros conforme as ideologias que professam. Assim, podemos concluir que a Modernidade trouxe inovações e benefícios, mas também contribuiu para a segregação da experiência, ou pelo menos, de determinadas experiências em certos indivíduos ou classes sociais.
Novas experiências também foram construídas em relação ao espaço. A partir das grandes navegações do século XV, realizadas principalmente pelos países ibéricos, as fronteiras do mundo foram ampliadas e seus mapas refeitos. Se antes disso o mundo era apenas o Mediterrâneo, os reinos europeus, Constantinopla e a parte do Oriente que se denominava genericamente de “Índias”, novos continentes, oceanos e rios foram integrados à cartografia, geografia e economia européia, por meio de colônias de exploração ou de povoamento e nos séculos XIX e XX, quando a maioria dessas colônias tem consolidada sua emancipação política, os espaços passaram a ser ocupados de forma diferente, tanto no campo como na cidade, mas como este trabalho tem como enfoque a cidade, trataremos apenas dela.
Transformações da cidade moderna e a vida das ruas

Nas grandes cidades, os terrenos situados em áreas favoráveis ao comércio e aos serviços, geralmente áreas centrais ou nobres, passaram a receber construções de edifícios de vários andares, como forma de “aproveitar” melhor aquele espaço. Em Paris, bairros inteiros foram demolidos para a abertura de bulevares, no Rio e Janeiro, as habitações dos pobres nas áreas centrais foram destruídas e seus moradores empurrados para os morros, em prol da modernização do centro da cidade, em São Paulo, foram as classes média e alta que se deslocaram, criando bairros como Higienópolis e Cidade Jardins, bens como condomínios de luxo fechados, que Teresa Caldeira conceituou como “enclaves fortificados”[6]. De acordo com a autora os enclaves fortificados têm gerado segregação espacial e social, pois a necessidade que seus moradores têm da cidade, de seus equipamentos e serviços é suprida, em grande parte, pela própria estrutura dos condomínios, que contam em sua infra-estrutura com lojas de conveniência, de venda de acessórios, confecções e artigos para decoração, drogarias, academias de ginástica, salão de beleza e de festas e “muitos metros quadrados de lazer e mata preservada”. Todavia, os habitantes desses luxuosos condomínios não vivem isolados ou convivem apenas entre “iguais”, pois trabalham fora, transportam filhos para a escola, fazem cursos em universidades, etc., e para manter a comodidade, aconchego e segurança da “casa-clube”, contam com o serviço de trabalhadores oriundos de bairros periféricos próximos ou distantes.
Mas se a Modernidade possui um berço, esse berço é a cidade de Paris do século XIX, governada por Georges Eugene Haussmann, seu prefeito, e por Napoleão III, seu imperador. E sem dúvida, seu maior pintor foi Baudelaire, que com sua pena traçou em verso e prosa a atmosfera da vida urbana, seus novos modos de se portar, seus fluxos, belezas e contrastes. Uma das atividades mais marcantes da modernização daquela cidade foi a construção de seus bulevares, que representou, segundo Marshall Berman[7], além de uma inovação urbanística e arquitetônica, uma estratégia política de apaziguamento das massas, pois empregaria milhares de trabalhadores em suas construções, gerariam outros milhares de empregos no setor privado, criariam largos corredores através dos quais as tropas de artilharia poderiam mover-se eficazmente contra as possíveis barricadas e revoltas populares e também uma estratégia de desenvolvimento econômico, que atrairia novos investidores e facilitaria o tráfego de pessoas e produtos. Pela primeira vez a cidade foi um espaço “aberto” a todos os seus habitantes, na medida em que as diferentes classes sociais puderam se ver frente a frente e sentir o incômodo e o fascínio desse encontro, retratado magistralmente no poema baudelaireano“os olhos dos pobres”[8] .É do mesmo autor outro poema[9] indicativo das mudanças de valores na vida moderna.
Para Berman a visão da vida moderna tende a se bifurcar em dois níveis: material e espiritual: algumas pessoas se dedicam ao ‘modernismo’, encarado como um puro espírito que se desenvolve em função de imperativos artísticos e intelectuais autônomos, e outras se situam na órbita da ‘modernização’, um complexo de estruturas e processos materiais – políticos, econômicos, sociais – que em princípio, uma vez encetados, se desenvolvem por conta própria, com pouca ou nenhuma interferência dos espíritos e das almas humanas. A primeira visão gerou importantes trabalhos no campo das artes, como os escritos de Baudelaire (poemas, ensaios, críticas a exposições de arte). A segunda promoveu uma forma de leitura da cidade que desconsidera a ação de seus sujeitos ou os apresenta de forma passiva, como massa amorfa de excluídos e marginalizados, como se a cidade fosse apenas produto de forças econômicas transnacionais, das elites, de lobbies políticos, variáveis demográficas, interesses imobiliários, dentre outros fatores de ordem macro, conforme argumenta Magnani[10]. Como contra-lócus desse tipo de estudo que faz uma apreensão generalista e muitas vezes superficial da cidade, utilizando-se de clichês da grande mídia e do que de fato se percebe ao olhar a cidade de forma rápida ou distante, uma vertente antropológica tem desenvolvido etnografias dos grupos que compõem a cidade, em suas várias regiões e demonstrado que a partir de um olhar “de perto e de dentro”[11] é possível reorganizar informações consideradas fragmentárias e compreender experiências urbanas aparentemente ilógicas e descontínuas, bem como o uso que os diversos grupos sociais fazem da cidade (trabalhadores ambulantes, empresários e funcionários do comércio ou de escritórios, jovens, idosos, pichadores, prostitutas, michês, migrantes e imigrantes, surdos, cegos, estudantes e não-estudantes, evangélicos e não-evangélicos), entre outros. A obra “Jovens na Metrópole”[12] é uma elucidativa apresentação dos circuitos de lazer e interação de jovens na cidade de São Paulo, realizada por meio de etnografias de agradável leitura.
As ruas das cidades modernas (diferente das ruas da cidade modernista)[13], especialmente as que não são fechadas ou se localizam em condomínio de entrada restrita, são espaços abertos à circulação de pessoas de todas as classes sociais e de desenvolvimento de uma série de atividades: fluxo de pessoas e veículos que simplesmente a percorrem vertical ou horizontalmente, trabalho, moradia, lazer, consumo (mesmo que mínimo para as pessoas de baixo poder aquisitivo ou desempregadas), tratamentos de saúde, aperfeiçoamento educacional, panfletagens partidárias, intervenções artísticas, encontros amorosos, crimes, especulação imobiliária e manifestações políticas populares. A vida das (nas) ruas na Modernidade conferiu aos citadinos nova subjetividade, novas identidades e novos modelos de relacionamento inter-pessoal. É comum nos sentirmos “atomizados” em meio a uma multidão de estranhos e para sentirmo-nos mais confortáveis e seguros nos “mimetizarmos” com as cores e estilos da maioria ou nos apegarmos a traços que possam nos distinguir da multidão e nos identificar com determinada “tribo”, com a qual temos afinidades, expressando assim, com nosso corpo, gestos e acessórios nossa “marca” no mundo.
Crise da Modernidade

“ontem faltou água, anteontem faltou luz,
teve torcida gritando quando a luz voltou”
(Legião Urbana)
Transformações nas esferas sociais, políticas e econômicas foram consideradas acontecimentos de longa duração até Idade Moderna, no que diz respeito à Europa.
A estrutura daquelas esferas era rígida e muitas gerações se sucederam sem notar mudanças na ordem estabelecida. A coroação, deposição e assassinatos de reis agitavam a vida das cortes, as guerras mobilizavam grande contingente de nobres, mas camponeses jamais seriam sagrados reis ou generais e seus trabalhos seguiam o curso imposto pela natureza e pelos parcos (se comparados aos nossos) recursos técnicos que possuíam, reis jamais se tornariam camponeses e nobres, mesmo que passassem por situação de crise financeira, teriam a proteção de seu suserano, “terceirizariam” os trabalhos e por sua vez seriam suseranos de outros. Claro que a Idade Moderna não se confunde com o que denominamos “modernidade” e que é apenas uma das bases sob a qual a qual esse modo de vida se desenvolveu, e que este possui características próprias que o diferem de tudo o que já existiu.
Vivemos, atualmente, um tempo no qual significativas mudanças nas instituições, e conseqüentemente nas sociedades, se desenvolvem de modo tão intenso, quase instantâneo que às vezes ainda nem terminamos de “processar” a informação anterior e já somos questionados sobre as novas. Dentre essas transformações estão coisas que nos sugerem uma nova era, não mais Moderna, mas Pós-moderna, como os avanços das tecnologias da informação, da robótica, da engenharia mecânica e da programação, as novas relações que delas derivam: trabalhos que podem ser desenvolvidos na própria residência do trabalhador, a “valorização” e comercialização de sua criatividade pelas grandes corporações, o “faça você mesmo”, os relacionamentos via Internet e uma economia centrada no consumo.
No campo político, guerras mundiais, polarização do mundo em dois blocos ideológicos (países socialistas e países capitalistas), corrida armamentista, derrocada do Socialismo e consolidação do Capitalismo como modo de produção hegemônico, exaltação das doutrinas liberais, e críticas contundentes aos danos que têm provocado nas periferias do capital, em particular, e ao planeta, de modo geral, indicam a crise do projeto da Modernidade e a urgência de se elaborar um novo, condizente com as especificidades do momento em que estamos. Mas que momento é este? Qual sua marca distintiva?
A primeira pergunta é com certeza mais difícil de se responder do que a segunda, porque para começar, não existe um consenso entre os estudiosos se ele é “moderno” ou “pós-moderno” e nem se o que se chama de pós-modernidade é algo genuinamente novo, com problemas específicos ou apenas uma continuação das potencialidades e conflitos que já estavam latentes na Modernidade.
Supondo que esses dois modos de vida coexistam (o moderno e o pós-moderno), não há, em relação a esses tipos de cidade, nenhum critério claro que as separem, todavia, de acordo com Sharon Zukin[14] algo mudou na maneira como organizamos o que vemos: o consumo visual do espaço e do tempo, que está simultaneamente abstraído da lógica da produção industrial, leva à dissolução das identidades espaciais tradicionais e à sua reconstituição sobre novas bases. Temos então espaços liminares, intersticiais, onde as fronteiras são incertas, variando conforme a perspectiva de seus usuários e construtores. Essas zonas de transição tanto podem ser objetos atraentes aos investimentos de uma economia de mercado, como podem ser espaço de segregação social e alvo de preconceitos ou de descaso dos poderes públicos local, estadual ou federal, como é o caso das ocupações urbanas do MTST em São Paulo, que não são favelas, porque têm um projeto político e organizativo diferenciado, mas também não são bairros do ponto de vista legal e nem possuem a estrutura e os equipamentos urbanos comum a eles. Falta água, energia elétrica, telefones públicos, creches, escolas, etc. Mas esta não a única paisagem urbana pós-moderna. Há que se destacar a comercialização de ideais, desejos e fantasias, que se expressam em condomínios de luxo que “recriam” um cenário campestre no meio da cidade grande, para os ricos nostálgicos de um passado bucólico que talvez jamais tenham vivenciado (o conhecem apenas por meio de livros, filmes e outras narrativas), ou que se expressam nos “mundos encantados” dos parques temáticos estilo Disney World.
As mudanças que percebemos em nível de instituições, como o enfraquecimento e/ou diminuição do campo de influência de algumas, como a Igreja, até a criação de novas, como o Estado-nação, atingem também as pessoas, como podemos perceber nessas novas formas de desejar o espaço e perceber o mundo ao redor, e se manifestam coletivamente. Tais mudanças são consideradas por muitos como o sinal do “novo tempo” e o sintoma da crise da Modernidade.
Independente de ser moderno ou pós-moderno e dos significado que cada corrente ideológica atribui a esses termos, não podemos esquecer que é a vida acontecendo, a vida das pessoas, a vida das cidades e que isso é “muito mais e muito menos” do que se pode dizer sobre elas.
Como o objetivo deste trabalho não foi encerrar o assunto “modernidade, experiência, cidade”, mas retomar questões discutidas anteriormente, refletir sobre elas e quem sabe suscitar algumas novas, gostaria que esse texto fosse visto não só como um exercício acadêmico com finalidade de nota – o que para mim nesse momento é fundamental - mas também como um desejo de diálogo que gostaria de manter com o NAU.
Referências Bibliográficas

BAUDELAIRE, Charles-Pierre. O SPLEEN DE PARIS. Ed. Imago, Rio de Janeiro, 1995.
BENJAMIN, Walter. O NARRADOR. MAGIA E TÉCNICA, ARTE E POLÍTICA. São Paulo, Ed. Brasiliense, vol. 01, 1987, pp. 197-221 (Obras Escolhidas).
BERMAN, Marshall. TUDO QUE É SÓLIDO DESMANCHA NO AR. São Paulo, Ed. Companhia das Letras, 1986.
CALDEIRA, Teresa. CIDADE DE MUROS: CRIME , SEGREGAÇÃO E CIDADANIA EM SÃO PAULO. Ed. 34/EDUSP, 2000.
LE CORBUSIER. A CARTA DE ATENAS. São Paulo, Ed. Hucitec/EDUSP, 1989.
MAGNANI, José Guilherme Cantor. DE PERTO E DE DENTRO: NOTAS PARA UMA ANTROPOLOGIA URBANA. RBCS, vol. 17, n.49, Junho de 2002.
MAGNANI, J. Guilherme C. e MANTESE, Bruna (orgs.). JOVENS NA METRÓPOLE. São Paulo, Ed. Terceiro Nome, 2007.
MEIHY, José Carlos Sebe Bom. MANUAL DE HISTÓRIA ORAL 5ª ed. São Paulo, Ed. Loyola, 2005.ZUKIN, Sharon. PAISAGENS URBANAS PÓS-MODERNAS. In: Antonio Arantes (org.): O espaço da diferença, Campinas, Papirus, 2000
[1] MEIHY (2005: p. 157).
[2] Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto. Este Movimento de caráter urbano possui no Estado de São Paulo seu âmbito de luta e em sua pauta constam a reivindicação de moradias populares e a reforma urbana.
[3] Datada entre o século XII e meados do século XV.
[4] BENJAMIN: 1980.
[5] (1980: p. 62)
[6] CALDEIRA, 2000.
[7] BERMAN, 1986.
[8] Spleen de Paris, n. 26)
[9] Spleen de Paris, n. 46)
[10] MAGNANI: 2002.
[11] MAGNANI: 2002.
[12] MAGNANI E MANTESE: 2007.
[13] A Carta e Atenas, documento resultante do 4◦CIAM (Congresso Internacional de Arquitetura Moderna), que pode ser encontrada no site do IPHAN estabelece que nos projetos de zoneamento da cidade modernista a casa deverá estar separa da rua e que a circulação será feita por meio de vias de percurso lento para o uso de pedestres e de vias de percurso rápido para o uso de veículos e que haverá ruas específicas para cada tipo de atividade.
[14] 2000.

CARTOGRAFIAS URBANAS

Xênia de Castro Barbosa
Partindo do pressuposto de que a leitura dos espaços urbanos, periféricos e centrais, não se faz somente sobre mapas, construindo um código abstrato, mas que essa leitura é por excelência “sintomal” [1], colocamo-nos em busca do que apresenta e de seus significados. Primeiramente cabe refletirmos sobre como as periferias urbanas se mostram, quais suas configurações, em seguida, o que são, o que revelam e por que.
Ao caminhar por periferias de Porto Velho, Itapecerica da Serra e São Paulo, com um olhar mais atento do que costumo ter em meu cotidiano de travessias na cidade – onde faço também o caminho centro-periferia, periferia-centro -, foi possível notar que estas se mostram afastadas dos centros de decisões da cidade e apresentam infra-estrutura precária. As moradias, na maioria das vezes são contíguas umas às outras, pouco espaçosas e inacabadas. Algumas parecem ser inseguras, incapazes de resistir a alterações climáticas as mais previsíveis, como chuvas fortes. Telefones públicos, pavimentação, saneamento básico, escolas, postos de saúde, quando existem nesses “bairros”, não funcionam de modo satisfatório. É comum nos depararmos nesses lugares com telefones que não fazem ligação, pavimentação insuficiente, saneamento básico inexistente, escolas que não ensinam, postos de saúde que não curam e não previnem.
Periferia é uma categoria de matriz geográfica que costuma ser pensada na dialética da cidade: centro/periferia, capital/trabalho. A classe de menor poder econômico ao ver-se impossibilitada de adquirir uma residência nos bairros centrais ou a ele adjacentes, e mesmo de pagar o alto preço dos aluguéis muda-se para regiões distantes. Na maioria das vezes trata-se de áreas de risco, na encosta de morros ou junto a córregos, distante do local de trabalho e da infra-estrutura adequada a uma vida com qualidade. Distante das boas escolas, dos bons hospitais, dos espaços de lazer.
São nessas regiões afastadas do núcleo de concentração do capital, dos serviços e do “lazer sofisticado” que os bairros dos pobres são construídos, diferente do que acontece, por exemplo, nas periferias da Europa e dos Estados Unidos, onde esses bairros são denominados “subúrbio”. Lá as áreas periféricas são as preferidas da classe média e alta e as centrais tornam-se habitadas pelos pobres e minorias étnicas. Nos dois casos percebemos uma segregação social manifesta no distanciamento em nível territorial.
Como o capital é móvel, hoje em dia já não se pode falar de uma única centralidade[2] e conseqüentemente, de uma única periferia. Percebemos, inclusive, o crescente interesse do capital se direcionando para as áreas periféricas, onde terrenos são adquiridos e permanecem inutilizados até sua “valorização”. Atualmente notamos condomínios de luxo erigidos na periferia, contudo, estes se relacionam o mínimo possível com o seu entorno, porque foram construídos para ser uma espécie de “ilha auto-suficiente”, com segurança própria, academia de ginástica, salão de beleza, cinema, creche, cursos de idiomas. E o que vier a faltar pode ser pedido por telefone ou via Internet. Caldeira os caracterizou como “enclaves fortificados”.[3]
Apesar de se localizarem em zona periférica, esses novos residenciais se diferenciam da vida que o circunda por sua estrutura e nomes elegantes. Jamais assume o nome do bairro, o signo da “quebrada”. É sempre o “jardim”, o “parque”, o “paraíso ecológico ou tropical” a “menos de X minutos” dos melhores restaurantes, aeroportos, bancos e escritórios. Contudo, esta não é a paisagem dominante nas periferias. O que mais se vê são casas inacabadas, sustentadas pela parede do vizinho ou pela encosta do morro, campinhos de futebol e singelos templos evangélicos. Edificações que de tanta dificuldade para serem feitas, já nascem com semblante de velhas. De acordo com José Moura Gonçalves Filho,

A visão dos bairros pobres parece, às vezes, ainda mais impiedosa do que a visão de ambientes arruinados: não são bairros que o tempo veio corroer ou as guerras vieram abalar, são bairros que mal puderam nascer para o tempo e para a história. Um bairro proletário não é feito de ruínas. Ocorre que ali o trabalho humano sobre a natureza e sobre a cidade parece interceptado [...] No bairro pobre, menos de ruína, o espetáculo mais parece feito de interrupção –, as linhas e as formas estão incompletas, não puderam se perfazer. Os meios, os recursos, sobre os quais o homo faber investe o seu poder inventivo, foram perdidos ou nunca foram alcançados: o resultado destas carências e frustrações é que os poderes mesmos da fabricação humana ficam perdidos ou nunca são alcançados – lançam-se em situações sem suporte, gastam-se no ar, sem resposta, são neutralizados. Faltam os instrumentos, faltam os materiais que suportariam o trabalho humano para a configuração de um mundo, para a fisionomia de uma cultura. Gradualmente, chega a faltar o animus faber[4].

Tudo é difícil para o habitante da periferia: o deslocamento para o trabalho ou para o desfrute de um momento de descanso, o pagamento do aluguel e dos encargos públicos, a construção da casa própria, as humilhações e preconceitos vivenciados no dia-a-dia. Como resistência a esse processo que os aparta tanto da esfera pública quanto da esfera privada[5] e na tentativa de se manterem minimamente integrados (trabalhando, consumindo), criam espaços de sociabilidades específicas: a casa sempre em construção, o campo de futebol, o bar onde o grupo de pagode do bairro pode falar do amor e suas decepções, a festa onde os meninos MCs daquela e de outras periferia podem encontrar receptores para seus protestos.
A periferia é um espaço que só será bem compreendido se levado em conta as relações sociais e expressões culturais que apresenta, e para isso, é preciso mais do que um olhar absorto em seus caracteres “exóticos” e em sua “capacidade de adaptação à realidade”. É necessário compreender os limites dessa segregação social, bem como seus vínculos com a regressão nos investimentos públicos e a gestão discriminatória da regulação e uso do solo. Outro fator que é preciso considerar nesse processo produtor de segregação social e espacial, é a urbanização. Esta, de acordo com Milton Santos[6] ganhou destaque no Brasil a partir de meados do século XX, com alterações na base de nossa economia: incentivo à industrialização e declínio da produção agro-exportadora de café. Urbanização e industrialização caminhavam lado a lado e pareciam representar uma porta de saída para a independência de séculos de dominação da produção agrária, todavia, “a evolução dos acontecimentos mostrou que ao lado de intenso crescimento econômico (7% em média entre 1940 e 1980), o processo de urbanização acarretou em crescimento da desigualdade e em uma gigantesca concentração espacial da pobreza” [7].
Trabalhos como o do geógrafo Milton Santos[8] e dos arquitetos Nestor Goulart Reis Filho[9], João Sette Whitaker Ferreira[10] e Ermínia Maricato[11] apontam para as especificidades da urbanização do Brasil no século XX. Se por um ângulo esse fenômeno é visto positivamente, como necessário para o crescimento do país, já que apto a atrair investimentos e gerar “oportunidades de emprego”, por outro é considerado responsável pelo acirramento das desigualdades sócio-econômicas, das disparidades entre as regiões e as habitações de ricos e pobres, pelo aumento das periferias.
O crescimento da periferia no Brasil é sintomático de uma urbanização desigual, cujas intervenções estéticas são realizadas majoritariamente em áreas de grande visibilidade, concentração do capital e interesses do Estado. De acordo com Eunice Maria Durham,
A população pobre está em toda a parte nas grandes cidades. Habita cortiços e casas de cômodos, apropria-se das zonas deterioradas e subsiste como enclaves nos interstícios dos bairros mais ricos. Mas há um lugar onde se concentra, um espaço que lhe é próprio e onde se constitui a expressão mais clara de seu modo de vida. É a chamada periferia [...] formada pelos bairros mais distantes, mais pobres, menos servidos por transporte e serviços públicos.[12]

Essa população pobre, ao se deslocar de seus estados de origem em busca de trabalho e melhores condições de vida, levava consigo o sonho da casa própria, que se tornou uma aspiração coletiva da classe trabalhadora. Kowarick[13] mostra que, até os anos 30, as empresas resolviam parcialmente o problema habitacional dos trabalhadores por meio da construção de vilas operárias. Isso era viável na medida em que a quantidade de força de trabalho a ser alojada ainda era pequena, mas com a intensificação do processo de industrialização, o número de trabalhadores aumentou, bem como a pressão sobre a oferta de habitações populares. Diante disso, as empresas transferiram para o Estado o dever de fornecer moradia aos trabalhadores, as vilas operárias tenderam a desaparecer e a questão da moradia passou a ser resolvida pelas relações econômicas no mercado imobiliário.
Na impossibilidade de comprar ou alugar uma casa nas áreas nobres da cidade, e na falta de financiamentos e alvarás para a construção - concedidos apenas a terrenos legalmente documentados foi preciso que as famílias trabalhadoras construíssem suas moradias nos bairros distantes e com sérios problemas infra-estruturais. Como as condições econômicas não são favoráveis a essa classe, o trabalho de construção das casas pode levar anos para ser concluído. Mas esta não é a única face da segregação, ela ainda se mostra em seu perfil social: essas pessoas apartadas geograficamente do resto da cidade também têm distantes suas condições de acesso a cidadania. Entendemos que a cidadania expressa um conjunto de direitos que dá à pessoa a possibilidade de participar ativamente da vida e do governo de seu povo. Quem não tem cidadania está marginalizado ou excluído da vida social e da tomada de decisões, ficando numa posição de inferioridade dentro de seu grupo social[14].
Entendemos que as famílias colaboradoras deste estudo, assim como os demais habitantes das periferias urbanas, estão em busca da cidadania. Os lugares que habitam: casas, apartamentos ou barracos de ocupações de trabalhadores sem-teto estão postos em periferias urbanas, são desses lugares que eles falam, que partilham conosco suas experiências e ideais de cidade. Isto nos levou a pensar a periferia “no contraponto entre estar fora e estar dentro da cidade”. De acordo com Rodrigues e Brito, “normalmente, a periferia é pensada como a borda, o limite entre o fora e o dentro. Estar na periferia é estar distante, na coincidência entre a distância espacialmente considerada e a distância politicamente imposta. É estar fora do centro do poder de decisão”[15]. Os bairros pobres que se formam a cada dia, as ocupações do MTST e do Movimento dos Trabalhadores Sem-teto de Rondônia, ao mesmo tempo em que constituem a condição primordial para que essas famílias se incluam na vida urbana da sociedade, são, em muitos casos, a única maneira de estar na cidade. Esse “estar na cidade”, como vimos, é contraditório: significa situar-se em seu espaço, mas não fazer parte dela, ser o seu refugo.
Bauman analisou o fenômeno do refugamento humano no âmbito da modernização destacando a questão do trabalho na contemporaneidade. Nosso tempo reflete uma modernização que progrediu triunfante, alcançando as partes mais remotas do planeta. A quase totalidade da produção e do consumo se tornou mediada pelo dinheiro e pelo mercado, a mercantilização e monetarização dos modos de subsistência penetraram os recantos mais longínquos, por isso, não se dispõe mais de soluções globais para problemas produzidos localmente, tampouco de escoadouros globais para excessos locais[16]. A vitória global da modernização tem como um de seus aspectos o número alarmante de refugo. A produção e o consumo excessivos, os resíduos a serem eliminados, o desperdício e o desejo insano de consumir o novo (que amanhã já será obsoleto), têm acarretado em uma sensibilidade desatenta e descompromissada com o próximo e com a vida na Terra.
Se num primeiro estágio a Modernidade produziu “exército de reserva”, desempregados com a expectativa de logo retomarem seus postos no mundo do trabalho, esse segundo estágio produz pessoas refugadas, colocadas na condição de excesso, de redundância, sem grandes convicções e oportunidades de se re-inserirem na sociedade. Elas estão presentes, mas como lixo, como seres descartáveis que já não tem utilidade. Bauman refere-se a essas pessoas como “vidas desperdiçadas”, de fato o são, pois não estão livres para desenvolver suas potencialidades, mas mais do que isso, diria que são “vidas sacrificadas”, pois é sobre elas que se sustenta o bem-estar dos que se beneficiam do progresso econômico e das vantagens de ser in.
Às pessoas refugadas ou em vias de entrar nesse processo, restam três alternativas: resignar-se, deixando as coisas seguirem seu fluxo, buscar individualmente soluções para os problemas que as atingem, e que como sabemos, não são individuais, mas de ordem social, ou buscar coletivamente a solução. Ao que parece, a última alternativa é a que pode produzir mais efeitos positivos, já que a ação coletiva pressupõe uma vida em comunidade, ou pelo menos um conhecimento acerca desta, memória e princípios partilhados. Aí já não se está sozinho e as forças se multiplicam, visto que “ser abatido como ‘baixa colateral’ do progresso econômico, agora nas mãos de forças globais livremente flutuantes, não é uma sina que os governos dos Estados possam prometer afugentar com alguma fidedignidade”[17] Se o Estado não pode assegurar os direitos sociais, sobra apenas um caminho: o de construção de uma democracia, no sentido etimológico do termo, e tal ação não pode prescindir de uma reconstrução dos direitos humanos.
Piovesan ensina que:
“No momento em que os seres humanos se tornam supérfluos e descartáveis, no momento em que vige a lógica da destruição, em que cruelmente se abole o valor da pessoa humana, torna-se necessária a reconstrução dos direitos humanos, como paradigma ético capaz de restaurar a lógica do razoável.
Contemporaneamente, é preciso destacar que centros e periferias se movem. No caso de São Paulo, por exemplo, observamos um retorno dos menos afortunados ao seu centro histórico - o que demonstra a circulação do capital e a fluidez dos interesses imobiliários que dia-a-dia estabelecem novas periferias. Desse modo, compreendemos a periferia para além de seu sentido geográfico, ou seja, de um afastamento em relação ao centro, como um processo constante de exclusão/luta por integração na cidade, marcado territorialmente. Vivendo essa exclusão, as colaboradoras deste estudo têm elaborado estratégias tanto para a sobrevivência cotidiana quanto para a transformação da estrutura social, como pudemos ver nas histórias de vida aqui registradas.
Se a crise urbana que presenciamos hoje tem raízes em processos antigos como o da industrialização e modernização nacional, e no próprio desenvolvimento do capitalismo na América Latina, como salientou Kowarick[18], nos perguntamos: o que mudou? O que há de novo nisso tudo? Os fatores que assinalam a crise urbana já estavam presentes em períodos anteriores, mas neles podiam ser “escamoteados através de uma pseudoliberdade de integração à sociedade de consumo” [19]. A diferença encontra-se justamente no agravamento desses problemas, à medida que aumentam o desemprego e a queda do valor do salário. A esperança e a luta por transformar esses quadros subsistem, mas já não se tem a convicção de que se trata de uma crise passageira, de que logo ela vai passar e todos terão um lugar na cidade.
No encalço das contradições que se avolumam no espaço urbano, novos Movimentos Sociais têm aparecido e articulado ações contra as políticas deteriorantes dos padrões de vida na cidade. A deterioração desses padrões de vida - que nunca foram lá muito elevados para a classe trabalhadora, para os escravos, os imigrantes, e os trabalhadores assalariados -, tem se tornado mais intenso à medida que o Estado posiciona-se favoravelmente ao grande capital, fornecendo a infra-estrutura e os insumos necessários para que ele possa multiplicar seus excedentes, em detrimento das demandas populares. O resultado dessa parceria entre Estado e capital é o aumento da espoliação urbana, a queda dos salários e do poder de compra e a precariedade ou falta de bens de uso coletivo, como escolas e meios de transporte. A existência desses problemas, não é por si só, suficiente para criar Movimentos Sociais - se fosse assim todos os que tomam ônibus e trens lotados ou não possuem casa própria estariam participando de algum -, mas a tomada de consciência desses problemas e a crença de que “um outro mundo é possível” é deflagrador do projeto de mudança que esses movimentos ensejam.
A periferia, para os militantes desses Movimentos Sociais tem um caráter especial, de transformação da sociedade, de luta e significa comunidade. Marcos narra:

Domingo passado um cara falou: “O time da favela ta jogando bem!” Eu falei: “Time da favela, não! Comunidade João Cândido! Não é favela, a gente já luta para acabar com favela, não vou aceitar essa palavra! É Comunidade João Cândido, Periferia, que é diferente!” Prefiro estar aqui dentro e ver a vida de cada um do que estar dentro do meu carro ou do meu apartamento isolado, com medo de sair na rua, porque os presos hoje são as classes média e rica, que ficam trancadas em suas casas, em seus condomínios, com medo de sair para comprar um pão, comprar crédito para o celular, nós não!

Produção e Apropriação do Espaço Urbano
Dentre os sujeitos produtores do espaço urbano, se destacam as famílias em busca de moradia, os detentores dos meios de produção, os agentes imobiliários e o Estado. No espaço urbano estão presentes camadas de vários tempos, do passado, do presente, do futuro que se deseja construir... Virtualidades, crenças que se cristalizam nos objetos geográficos e arquitetônicos com os quais nos relacionamos e que trazem consigo indícios de ideais, concepções estéticas e políticas, lutas de classes.
Ao produzi-lo, seus construtores projetam nele seu sistema de crenças. De acordo com Milton Santos os construtores do espaço não se desembaraçam da ideologia dominante quando concebem uma casa, uma estrada, um bairro, uma cidade. O ato de construir está submetido a regras que procuram nos modelos de produção e nas relações de classe suas possibilidades atuais. [20].
Com o avanço do capitalismo o urbano tem passado por inúmeras transformações, a saber:
a) De pequenas, algumas cidades tornaram-se metrópoles densamente povoadas e populosas, que não conseguem atender as demandas dessa população crescente. Essa situação é reflexo, dentre outras coisas, do êxodo rural, também provocado pelo avanço do capitalismo sobre as zonas rurais. Novas tecnologias passaram a substituir em grande parte a mão-de-obra camponesa e mostram-se mais adequadas aos novos interesses mercantis (produção em larga escala, monocultura).
b) A cidade passou a ser mercadoria e seu solo, objeto de especulação imobiliária. Além de grande número de terrenos urbanos ficarem ociosos, aguardando valorização, os que estão disponíveis para comercialização tornam-se tão caros a ponto de serem inacessíveis a determinados segmentos da classe trabalhadora.
c) Com o encarecimento do solo e a gentryfication de determinadas áreas, as classes populares são obrigadas a se deslocar para as periferias, frequentemente lugares distantes do centro da cidade (ou dos centros), distantes de seus locais de trabalho e com sérios problemas infra-estruturais. Enquanto as classes populares são expulsas das áreas centrais e nobres da cidade, as classes média e alta se deslocam também para regiões distantes e constroem nelas “enclaves fortificados”[21], como condomínios fechados de luxo, que contam com excelente infra-estrutura (alguns já possuem até escola) e considerável rede de serviços, como academias de ginástica, salões de beleza, clínicas de estética e lojas de conveniências.
d) Mas não foi só o solo urbano que se tornou mercadoria. A cidade como um todo passou a ser tratada como tal. A substituição do valor de uso pelo de troca atribuiu à ela novo sentido: ela não é mais considerada lugar para se habitar, mas um “ambiente visual”. Segundo Barbosa[22] é nessa direção que se investe e se revestem as cidades com design clean do mobiliário urbano destinado a modernizar/disciplinar o uso mercantil da paisagem, por meio de concessão de espaços públicos a corporações privadas. Prefeituras de diversas cidades passam, então, a recortar áreas da cidade e ceder aos interesses das firmas de design urbano, e como contrapartida da criação, instalação e manutenção dos objetos criados, as empresas podem fazer uso do “espaço” para fins publicitários. Assim, sob o primado da circulação de imagens, a cidade é convertida em um capital móvel do consumo seletivo e de massa.
e) A segregação social resultante do processo de comercialização da cidade – separação entre os que podem consumir em demasia, os que consomem apenas o mínimo vital e os que consomem apenas as sobras dos outros, tornando-se eles próprios refugo humano – potencializa a cidade enquanto palco da luta de Movimentos Sociais que visam superar as contradições, desigualdades e prejuízos causados pelo Capitalismo, enquanto modo de produção dominante.
[1] LEFEBVRE, op.cit., p.85.
[2] A esse respeito ver o livro de Heitor Frúgoli Junior: CENTRALIADE EM SÃO PAULO: TRAJETÓRIOS CONFLITOS E NEGOCIAÇÕES NA METRÓPOLE. São Paulo: EDUSP, 2000.
[3] CALDEIRA, Teresa. CIDADE DE MUROS. São Paulo: Ed. 34/EDUSP, 2000.
[4]GONÇALVES FILHO, José Moura. HUMILHAÇÃO SOCIAL: UM PROBLEMA POLÍTICO EM PSICOLOGIA. São Paulo: Psicologia USP, vol. 9, nº 2, 1998.
[5] Esses sujeitos são apartados dos espaços de decisão política e da vivência da intimidade. Passam a maior parte do tempo no trabalho, realizando tarefas alienantes, ou em trânsito entre o local de residência e o do emprego.
[6] SANTOS, Milton. A URBANIZAÇÃO BRASILEIRA. SÃO PAULO: EDUSP, 2005.
[7] MARICATO, Ermínia. A BOMBA RELÓGIO DAS CIDADES BRASILEIRAS. In: (URL: http://www.usp.br/fau/depprojeto/labhab/04textos/exclusao.doc)
[8] SANTOS, Milton. O ESPAÇO DO CIDADÃO. São Paulo: EDUSP, 2007.
[9] REIS FILHO, Nestor Goulart. NOTAS SOBRE URBANIZAÇÃO DISPERSA E NOVAS FORMAS DE TECIDO URBANO. São Paulo: Via das Artes, 2006.
__________ (org.) BRASIL: ESTUDOS SOBRE DISPERSÃO URNANA. São Paulo: FAU-USP, 2007, vol. 1.
[10] FERREIRA, João Sette Whitaker. GLOBALIZAÇÃO E URBANIZAÇÃO SUBDESENVOLVIDA. São Paulo: Rev. São Paulo em Perspectiva, vol. 14, nº 04, 2000.
[10] MARICATO, Ermínia. URBANIZAÇÃO NO BRASIL: A MODERNIZAÇÃO EXCLUDENTE. São Paulo: Família Cristã, vol. 3, 2001
__________ URBANISMO NA PERIFERIA DO MUNDO GLOBALIZADO: METRÓPOLES BRASILEIRAS. São Paulo: Rev. São Paulo em Perspectiva, vol. 14, nº 04, p. 21-33, 2000.
[11] DURHAM, Maria Eunice. A SOCIEDADE VISTA DA PERIFERIA. In: (URL: http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_01/rbcs01_07.htm).
[11] KOWARICK, Lucio. A ESPOLIAÇÃO URBANA. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.
[12]DURHAM, Maria Eunice. A SOCIEDADE VISTA DA PERIFERIA. In: (URL: http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_01/rbcs01_07.htm).
[13] KOWARICK, Lucio. A ESPOLIAÇÃO URBANA. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993.
[14] DALLARI, Dalmo de Abreu. DIREITOS HUMANOS E CIDADANIA. São Paulo: Ed. Moderna, 1998.
[15] RODRIGUES; BRITO. Op.cit., p.52.
[16] BAUMAN, op.cit., p.13.
[17] BAUMAN, op.cit., p.112.
[18] KOWARICK, op.cit.
[19] BLAY, op.cit., p.16.
[20] SANTOS, Milton. op.cit., p. 24.
[21] CALDEIRA, op.cit.
[22] BARBOSA, Jorge Luis. A CIDADE CAÓTICA: IDEOLOGIA E SIMULAÇÃO DA CRISE A SOCIEDADE URBANA. In: GEOUSP Espaço e Tempo, 2001, nº 10.